segunda-feira, 1 de março de 2010

Good Bye, Lênin?




Ouvia Good Bye Lênin, música de Yann Tiersen, o mesmo bretão que compôs a brilhante trilha sonora do Fabuloso destino de Amélie Poulain, quando entendi que precisava escrever sobre minha mudança de estado. Literal mudança de estado.


Saí quase da mesma forma que cheguei. Anônimo. Sem recepção. Sem despedida. Lembro que quando cheguei os únicos que me deram algum auxílio foram os solidários operários da noite, mototaxistas. Inclusive me indicaram um motelzinho barato pra passar a noite. Que me importa se depois votaram em tigres e outros animais... Operários são operários, camaradas em qualquer parte do mundo. E pra isso não é necessário assinar uma ficha.

O caso do motel merece um parêntesis. Só aconteceu porque antes disso fiquei duas semanas ligando para os camaradas oficiais, de ficha assinada, pedindo guarida, e me passavam de gabinete em gabinete, um empurrava pro outro e nada se resolveu. Não estavam nem aí. Este tipo de solidariedade não dizia respeito àqueles que estavam n’Ele, ou próximos d’Ele naquele momento. Resultado. Fui de mototáxi para o motelzinho mesmo.

Pois bem, cheguei e saí quase como o Avô e o netinho, no conto do Gorki. Meu final foi um pouco mais feliz, mas a permanência foi parecida. No caso eu era o neto. Num lugar onde sobrenome vale muito, chego eu, um Da Silva, um bastião operário, solito e forasteiro nesse rincão, sem ter sequer união civil com famílias de bem, mais abastadas, e por isso sempre fui digno de desconfiança. Por mais que eu me esforçasse, nunca perdi esse estigma. São assim as pessoas daquela terra, incontestavelmente.

Procurei Ele. Ele, que pra mim é um grande instrumento de luta, e não um fim em si. É a ação de cada um onde desenvolve suas atividades e não um grupo de pessoas iluminadas. Ele é a vanguarda. É o que há de mais avançado nesse processo de mudança social. Cheguei perto dele pela primeira vez quando era operário de chão de fábrica noutro rincão. Ele me ensinou muita coisa. Fui seu súdito jovem por onde passei.

Nessa terra não foi diferente. Servi Ele e seus súditos mais jovens, alegremente, por bastante tempo. Tirava parte considerável de meu soldo mensal para dar de comer, dar abrigo, roupa ou passagem para um ou outro jovenzinho que estivesse em dificuldades. Fiz isso porque acredito piamente no seu projeto. Chegou um tempo em que alguém que não gostava d’Ele me tirou o soldo de todos os meses. Continuei servindo-o, gastando minhas magras economias. As economias terminaram e fiz algumas dívidas, por acreditar tanto n’Ele. Só que dessa vez Ele tornou a me ensinar algo importante: nada posso fazer sozinho. Sempre precisarei dos outros que o servem também.

Pois bem, tendo aprendido essa lição fui buscar a ajuda daqueles súditos mais abastados, em condições muito melhores que as minhas. Passei a ser súdito dos súditos e para isso recebia algumas esmolas no final do mês, nunca dadas de bom grado, pois era preciso rebaixar-se um pouco mais para merecê-las, tendo que pedir. Até que chegou o dia em que as esmolas também foram negadas, e faltou abrigo, passagem e outras coisas vitais a qualquer ser humano. Não vi alternativa senão partir.

Numa noite clara peguei carona na luz da lua e parti com minhas poucas tralhas. Ao passo que me distanciava daquele lugar pensava em tudo que se passara até aquele momento e nas coisas difíceis de mudar. Eu era então um cientista com ethos de operário. Meu currículo era muito bom, mas de que havia servido até aquele momento? De que valia tanto estudo se precisava de esmolas pra viver?

É possível que nesse momento estejam novamente me acusando de falta de camaradagem, por ter partido sem esperar os mais abastados retornarem de suas férias na praia para enfim sorrir com suas esmolas. Qual camaradagem? Existem diferentes camaradagens?

Não. Pra mim não. Só existe uma camaradagem e a sensibilidade proletária só tem quem é proletário. Essa pequena burguesia infiltrada n’Ele não entende o que é não ter como pagar o aluguel, a dor que dá no estômago quando se fica sem comer, o que é ficar privado de todo e qualquer bem de consumo, mal satisfazendo as necessidades fisiológicas. Foi por isso que numa reunião de cúpula, não muito tempo atrás, pedi mais trabalhadores, mais assalariados, mais pobres na condução d’Ele, pois enquanto essa pequena burguesia insensível estiver dirigindo, tantos outros camaradas como eu que poderiam contribuir muito mais, ficarão sem espaço.

Faltou camaradagem, mas não de minha parte. Foi a mesma camaradagem que faltou quando tive que dormir naquele motelzinho barato.

Não fosse a minha convicção no projeto d’Ele, vacilaria e acreditaria num Adeus Lênin. Mas nunca. Por tudo que vivi nesses últimos tempos acredito que Lênin deve estar mais presente, ensinando a todos o verdadeiro sentido da palavra camarada.

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