domingo, 28 de fevereiro de 2010

I want a Line

 


Eu quero uma linha. Algo que me oriente aqui nesse ocidente. Mesmo que seja ontem ou amanhã, mas que seja. Que seja essa procura, essa espera. Que seja.
Permita-me citar Belchior, pois "talvez eu morra jovem, alguma curva no caminho, algum punhal de amor traído, completará o meu destino..."
Falaremos para a vida: "Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil;
Meu coração é como vidro, como um beijo de novela".

E as paralelas... essas linhas que insistem em não se encontrar. Que seja ao menos tangente, ou um amor perpendicular, que cruze minha vida como o trem diário. Eu quero uma linha. Uma linha.

Preso às correntes do meu silêncio peço ao Vitor que me empreste suas palavras, para fazê-las minhas por um pequeno instante, enquanto não encontro minha linha...

Sem uma linha eu... eu...
To vivendo em outra dimensão
Longe de você
Habitando o fundo de um vulcão
que eu domestiquei

Todo dia deixo o sol entrar
mas a luz não vem
A janela em mim é tão brutal
Causa esse desdém

Meu relógio em outra dimensão
corre de você
Solto o pensamento num tufão
Finjo que pensei

Todo dia o dia quer passar
mas o fim não vem
A espera é sempre tão brutal
Tudo se mantém

Acredito em outra dimensão
Longe de você
Lava, fogo, cinzas, solidão
Já me acostumei

Todo dia passo te encontrar
mas você não vem
O deserto em volta é tão brutal
Sempre te detém
Sempre te detém
Sempre te detém
Sempre te detém

(Longe de Você - Vitor Ramil)

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Com ela




Não sei se é minha consciência ou uma amiga imaginária, mas sempre tive a sensação de ficar o dia todo conversando com alguém que eu não enxergo. Tudo que eu faço, tudo que eu vejo e sinto ela fica sabendo. Todos os meus dilemas e minhas angústias eu sempre divido com ela, e foram raros os momentos em que reclamou disso. Quando eu era criança costumava dar muita atenção a ela e ao que ela me ensinava, mesmo que não fosse exatamente o que o tal de mundo real considerava certo. Essa nossa experiência silenciosa desbravava terrenos nunca antes vistos, conhecia objetos, pessoas e palavras, dando significados muito particulares a tudo que era perceptível.

Um dia fui obrigado a ir para a escola. Quando fui matriculado já estava com quase seis anos, e tive que ir direto para a pré-escola para desenvolver a sociabilidade. A escola era grande e havia muitas crianças, a maioria urbana e de vida muito diferente da que eu até então conhecera. As únicas aglomerações de pessoas que já tinha presenciado eram as poucas festas ou velórios na comunidadeonde morava antes. Pouquíssimas vezes. Não entendia de onde saiam tantas crianças. Eu que estava mais acostumado ao silêncio de lá e praticamente só conversava com uma pessoa: ela.

Nos primeiros tempos de escola ela foi uma companheira importante. Observava comigo as outras crianças e seus comportamentos e aquela figura distante que era a professora. Um dia, numa aula de alfabetização a professora mudou. A professora da outra turma nos deu aula, só naquele dia. Além da pessoa fisicamente diferente ela também tinha uma forma diferente de escrever no quadro. Ela usava letras garrafais e eu só conhecia a letra redondinha da outra professora. Principalmente a letra ‘o’, que tinha uma voltinha que passava por dentro da letra, mais na parte de cima, e parecia o rosto de uma menina com o cabelo penteado para o lado. Se duvida que parece, pode escrever aí num caderno pra ver. Pra mim parecia. Pois bem, a nova professora escreveu um ‘o’ que parecia um zero. Não tinha a voltinha no meio. O resultado disso foi que todas as palavras que continham a letra ‘o’ ficaram inelegíveis para mim, porque não fazia sentido um zero no meio das palavras. Copiei todo o texto do quadro negro como alguém que desenha, sem entender nada do que estava fazendo. Eu e ela passamos dias e dias tentando resolver aquele enigma até que a professora habitual nos mostrou as outras formas de escrever, entre elas as letras garrafais, e lá estava o ‘o’, sem a voltinha por dentro. Foi uma das descobertas mais significativas que fizemos naquele período.

Se você não entende o significado dessa vitória é porque já se esqueceu de você mesmo. Todas as conquistas eram muito importantes e recebiam o tratamento merecido. Ela me disse que é assim que os homens são formados.

Ainda não entendi porque tive que deixar de ser criança. Fui crescendo e comecei a contrariá-la. Na adolescência, que terminou faz pouco, debatíamos sobre qual seria a forma mais correta de agir diante de determinada situação, e eu acabava fazendo tudo ao contrário do que havíamos planejado. Acho que algumas vezes eu ignorei completamente o que ela me dizia. Possivelmente essas foram as vezes que me dei mal. Em muitos casos estávamos planejando alguma coisa e em função de um determinado acontecimento eu largava tudo e saía, sem considerar o que havia discutido com ela. Depois ela voltava, com sua paciência e resignação, e me ensinava o significado e as conseqüências do que chamam de erro. Em conseqüência disso ela sentiu medo, angustia ou desespero junto comigo.

Ela continua comigo. Acho que nasceu comigo e recebeu a tarefa de me acompanhar por toda a vida. As vezes me cobra por um erro cometido aqui, uma falta ali, um desleixo acolá, e isso é bom. Ela me faz crescer de um jeito diferente, e me incentiva a acompanhá-la nas suas aventuras, a aprender coisas novas. E me diz que logo saberei o suficiente da vida, ao ponto de entender que as coisas mais sérias são aquelas que recebem a mesma carga de significados que uma criança consegue dar. Então serei um adulto de verdade.

Foi ela que me pediu esse texto.